quarta-feira, 15 de março de 2017

56 - JOGO GANHO, JOGO PERDIDO



Escrevo, amante de sonhos e devaneios, sinto ao escrever a espessura crescente da imbecilidade da espécie humana à qual pertenço, onde homens vulgares se engrinaldam, sem humildade, pedindo às massas enfeitiçadas que os sigam, com discursos pós-pós-modernos de profunda vacuidade e ignorância. Apelam às sensações mais primárias com informações falsas, caluniosas, indefinidas, geram e gerem o medo e a malícia, enganam e contradizem-se, rugem mensagens mentirosas com a arrogância de semideuses, adoram o protagonismo e a decadência, amam o caos e a cegueira que procuram perpetuar e ameaçam despudoradamente todos os que os ousam contradizer. Escrevo estas palavras para as expor nesta montra que ninguém vê, e se alguém as visse de que serviriam as mensagens metafóricas, perdidas na sombra, meros vestígios escondidos de extinta luz.

Somos mais do que alguma vez fomos, animais bípedes inteligentes que anseiam sobreviver ao tédio perpétuo que nos enfraquece. Somos iguais, somos sempre diferentes, e desola-nos a luz que desconhecemos e que paira, brilhante, por cima das cabeças dos outros. Esbarramos em muros que nos entretivemos a construir, que depois acabámos por destruir, e que nos entretivemos a reconstruir, em outros lugares, com outras intenções, sempre com a instintiva e primária vontade de nos separar do outro que não desejamos conhecer, nem acolher, nem abraçar, nem entender… os outros serão sempre os seres selvagens que não queremos deste lado onde vivemos, o melhor de todos os lados, obviamente.

É com emoção que digo saber para onde caminhamos, e que este jogo perigoso terá sempre o mesmo fim, o mesmo negro final. Somos náufragos nesta jangada única onde nos afogamos, mas onde julgamos estar a navegar por mares dourados de tonalidades violeta e anil.

Imagens reais bem conhecidas, muito expressivas e violentas, chegam-me da memória da história que omitimos e esquecemos. O meu pensamento dispersa-se em figurativas sensações difusas, talvez tenha chegado o tempo de me substituírem a alma por uma tapeçaria bordada à mão com fios dourados. Estou cansado deste ritmo incerto da nossa nova história em que os bárbaros desabrocham em jardins de sangue, futilidade, promiscuidade e loucura.

Condeno estas imagens que me atormentam, e repudio os meus pensamentos catastróficos e niilistas. Deveria dar-me menos a este trabalho para erguer de mim apenas o brilho de um sol clássico e sóbrio que me aquecesse, ao invés destes extraviados repentes absurdos e sem nexo aos quais sucumbo nesta escrita que aqui se põe. Deveria preocupar-me em escrever poemas mágicos com estas palavras que invento e que sei lá como é que nascem. Afogar-me na tinta azul ou negra das canetas, traçar conjeturas literárias bem mais emocionadas e apetecíveis, esquecer-me de vez das causas religiosas, políticas e económicas, antes descarnar os detalhes da visão dos sonhos que esculpem com precisão os variados encontros com a nossa consciência, e espantar-me com tudo o que seja de pasmar!

O Mago sentiu excessivamente, constatou e constatou-o, afastou-se dos homens, gelou toda a sua superfície de convivência e elevou, com despropósito, o sofrimento que vem de sentir. O Mago sonhador foi incapaz de evitar o sofrimento, antes aprendeu a ir buscar à dor o prazer, e educou-se até a senti-la falsamente, falsa era a dor que sentia, tão falsa que, certamente, seria dor inteira e verdadeira a que falsamente dizia sentir.

- Dias inteiros havia passados somente nisso. Tinha um prazer qualquer, um “je ne sais quoi” que experienciei exageradamente, artificialmente, e que caminhos eu segui para conseguir criar o meu dicionário de análise da dor… que longos caminhos foram esses que eu percorri.

Mago, arquiteto construtor de sensações sutilizadas através da inteligência, dor que sentias imediatamente ( Tu próprio o dizias ), analisada até à secura e enterrada em Ti até ao auge de ser dor… e só então Te parava a vida e a Arte se rojava aos pés. Este Teu segundo passo era de uma intensidade tão grande que só me pode causar a inveja profunda que sinto ao olhar para Ti e para as palavras que lavravas como se fossem Tuas. E escrevemos, talvez, pela mesma razão plausível, porque este é o fim, o requinte supremo temperamentalmente ilógico da nossa cultura de estados de alma. Assim que leio (est)as palavras inteiras que talvez de igual maneira tivessem nascido de Ti, acredito nelas mais ainda, acredito no máximo poder do puro sonho, e não finjo que ouço, pois se também Tu não finjias que os lias, quem sou eu para fingir…

A obra que se faz, ao menos fica feita, será pobre, conforme afirmavas, mas ao menos fica feita, e existe, tal e qual a vida, um tédio que antecipa apenas mais tédio – grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos…

- Falas comigo, Mago? Fala comigo! Neste meu mundo, nosso mundo, cresce o desalento e o desespero, precisamos urgentemente de Magos como Tu! As palavras que escreveste são únicas, impérios inteiros que afirmavas serem nulos e nada valerem. Porque escrevias essas falsidades, e porque dizias que perdias o Teu tempo ao fazê-lo e que apenas o ganhavas na ilusão desfeita de ter valido a pena fazê-lo? Fala comigo! Faz-me esse favor, ajuda-me a compreender este vazio que se propaga por todo o lado com o mesmo vigor de outrora, sem regras e sem adversários à altura… que falta fazes hoje a este mundo perdido e à deriva onde todos vomitam opiniões talhadas a preceito sem valor nenhum.

- As palavras nascem, as palavras fogem ao nascer nessa liberdade única que ninguém consegue explicar, frases que nunca escrevi, paisagens que ficaram por descrever, ainda vivo, ainda sonho, dupla tragédia de as saber nulas e de saber que não foram todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato em eu pensar e elas serem, E hoje, que queres tu de mim se fui apenas génio mais que nos sonhos e menos que na vida?

- Mago, deixa-te de mais falsidades e contradições, o mundo precisa de Ti, precisa das Tuas palavras… diz-me como nascem as palavras!

- Guia-te pelo instinto dos gatos! Aproveito para te recordar aquilo que outrora entendi: o mundo no qual nascemos sofre de renúncia e de violência – da renúncia dos superiores e da violência dos inferiores, que é a sua vitória. Nos dias de agora, esses em que vives, deverá doer ainda mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida, e como eu nada sabia, escrevia e, tal como tu fazes agora, usava os grandes termos da Verdade alheia: conforme as exigências da emoção. Não ouses escrever mais do que algumas palavras, eu mesmo, no pouco que escrevi, fui imperfeito também…

A vida é feia porque é toda fim e propósitos e intenções.



Meu amor, amor meu, afinal todas as palavras, as palavras todas, mais não são que um imenso absurdo, imperfeito absurdo que me entretenho a aqui escrever em liberdade. E fingir é amar!

Mais uma vez, foi o Mago quem ensinou…

FIM

segunda-feira, 13 de março de 2017

55 - INDIFERENÇA



Quanto esforço, quanto tempo perdido, quanta incerteza a cada estado de alma, dolorosa incerteza possuir esta certeza absoluta de escrevermos mal. Esforço inglório, realização inferior e grotesca dramatização. Eu ouço-Te Mago, e agora conheço a Tua tragédia. Restam as crianças porque dizem como sentem e não como se deve sentir, definem sem rodeios toda a sua literatura.
Dizer, saber dizer, saber como dizer e o que dizer, saber existir pela voz da escrita, poder voltar a ser uma criança à beira de chorar, a mesma criança literária que tão bem definiu a sua espiral.

Tudo isto é quanto a vida vale.

O que resta são bichos, gente a remexer-se como bichos quando se levanta uma pedra, que bela esta Tua imagem no meio de tanto desassossego.
- Exato, devolveste-me a lembrança desse Pedregulho abstrato do céu azul sem sentido!

Eu e o Mago sorrimos debaixo deste céu cinzento sem sentido, salvação ilusória e momentânea da sordidez de sermos ou já não sermos… pois se apenas na arte gozamos e entendemos tudo que nos delicia sem que seja ( de verdade ) nosso – “o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objetivo.”
Eu e o Mago sorrimos, como dois patetas, debaixo deste céu cinzento sem sentido, salvação ilusória e momentânea da sordidez de sermos ou já não sermos. Eu e o Mago ainda lá estamos a sorrir, como dois perfeitos patetas.
- Tu, que sabias que na vida transitória nada eras, e escreveste um dia que podias gozar a visão do futuro ao leres essa página, pois efetivamente a escreveste, e podias orgulhar-te, como de um filho, da fama que terias, porque, ao menos, terias com que a ter.
- Sim, e também escrevi que a glória não é uma medalha, mas uma moeda, e para os valores maiores não há moedas: são de papel e esse valor é sempre pouco.

Para que nascem as palavras? Será mais sensato perguntar para que nascem e não como nascem. Sim, julgo ser mais correto colocar a questão desta maneira, pois se apenas aos que já não estão sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
O meu novo sonho é poder vir a ser esse incompreendedor que o Mago referiu no meio das suas palavras.

Regressei aqui, a este cinzento menos pálido da manhã. Aquecido por um sol menos envergonhado, engreno no trabalho do costume sem companhia, só, solitário, pintado pelas cores alegres da música jazz que passa na rádio. Regressei a este futuro do meu Mago, o mesmo futuro em que Ele pensava, com deleite triste, existir alguém que o pudesse “compreender”, essa gente seriam os seus, a família verdadeira onde nasceria e seria amado, família que só o pôde compreender enquanto efigie e quando a afeição já não Lhe compensava, pois se morreu…

- Diz-me como nascem as palavras, nesta manhã entardecida.

- Sim, nesta manhã em que nos vemos, a hora da dolência aproxima-se a passos largos, mas foi franca e proveitosa a conversa até este instante em que a inconsciência nos separa e a realidade volta a roçar em nossos corpos inúteis.

Até breve,
… até já!

quinta-feira, 9 de março de 2017

54 - POR ESTE RIO ACIMA



Este é um mundo desolado e sem propósito que nos entretemos a descrever. Consolam-me as palavras, se me faltassem dormiria bem mais inquieto e, contudo, não durmo, deito-me e levanto-me desmaiado neste registo de mim, uma propriedade com fronteiras de figura, um livro constantemente inacabado escrito em parte alguma.

Abandono-me em frases por terminar, avanço em direção a elas analisando os precipícios do sistema, a gramática vulgar que dita as leis inconscientes que erijo, obscuras, confusas, expressões sem concordância, sem regras absolutas, sem divisões, e as formas irregulares separam a matéria da antimatéria divina que ainda não foi criada, mas que exerce já uma atração fatídica convertendo o imaterial buraco negro na suprema força que tudo cria ao invés de sugar e destruir. Fraca filosofia, pequena e fraca filosofia esta das palavras que nada dizem ao tentar dizer.

Errei, terei errado quando escrevi tudo o que já escrevi? Não, não terei errado ao escrever tudo o que já escrevi, terei errado se não escrever tudo aquilo que ainda não escrevi, mesmo se com erros, mesmo se só com erros e falhanços continuar a construir a essência da minha literatura. Este meu reino não é visitado por fadas ou elfos, por gigantes, gnomos ou feiticeiros que distribuem feitiços e evocam os poderosos senhores de florestas distantes, este meu reino nem sequer é povoado por humanas formas de gente. O tabuleiro invisível das palavras é leve, possuí cheiros, cores, sons, é nele que passam a existir as minhas memórias que depois transformo e me transformam sempre que a elas ouso regressar.

Será mais simples começar a obra ou acabá-la?

Será bem mais difícil dar-lhe um começo ou um final, e que recordações perdurarão para além das palavras intermédias de todos os romances?

Distraio-me, ando constantemente distraído com qualquer coisa e o meu instinto adia o restauro deste edifício de palavras. Será que também fico desolado ao terminar mais uma obra? Cedo, suspendo a alma mais do que lhe obedeço, observo o manto que cobre os telhados de ignorância e a eles subo para melhor me interromper.

- Mago, também tu conversavas sozinho para formar as palavras do teu livro, e sentias de repente uma necessidade de falar com outra pessoa. Depois, dirigias-te à luz que pairava sobre os telhados, e eu vejo nesta luz de agora a tua figura a observar os telhados de outrora, aqueles que te pareciam molhados por a terem de lado, e onde buscavas inspiração… Eu dirigi-me a esta luz citadina de hoje, mais real do que suposta, para me esquecer das coisas inúteis por mais uns instantes.

- Porque escreves, se não escreves melhor? Mas que seria de ti se não escrevesses o que consegues escrever, por inferior a ti mesmo que nisso sejas?

Meu único vício, aquele que o Mago desprezava e onde sempre viveu.

- Recorda, se já nesse tempo afirmei que o meio moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de construção no espírito, e de novo te recordo que fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma das tragédias da alma. Porque escrevemos então? Escrevemos para cumprir um castigo, e o maior castigo é sabermos que o que escrevemos resulta inteiramente fútil, falhado e incerto…

E dizias Tu poder vir a ter saudades dessa vida incerta em que mal escrevias e não publicavas, ter saudades de quando eras fútil, frusto e imperfeito, ter saudades da hipótese de poder ter um dia saudades.

Só, neste vício que me atormenta e desprezo como quem ama.

Escrevo, tantas vezes escrevo as palavras para não ter de as dizer.

Devaneio, é tudo um devaneio que assim verbalizo em palavras que sonho em silêncio e solidão, e depois falo contigo, sei que falo contigo mesmo que nunca fale contigo, mesmo que os meus humildes átomos me façam sentir a falsidade das nossas conversas absurdas, imateriais…

 Ao fundo de uma íngreme descida na autoestrada, uma viatura parou depois de ter danificado a suspensão dianteira. Travei, passei pela esquerda do carro parado, sem demoras, quase sem dar conta da cor ou da marca ou da pessoa que o conduzia, só me apercebi dos graves danos na suspensão dianteira do lado direito, completamente partida, mas a fila era grande e o atraso também. Encontrei-me nesse mundo pelas quatro e trinta e sete da madrugada, sem fazer ideia do carro que conduzia ou para onde me dirigia, qual a cor dos estofos ou quem era a pessoa que seguia comigo sentada no banco traseiro. Embalado pela velocidade a que seguia, recordo-me vagamente da paisagem onde o Cristo-rei e a ponte me sorriram, e eu agora sou capaz de jurar que era o Mago quem estava sentado nesse banco a olhar a mesma paisagem pela janela, com um chapéu de chuva entre as pernas, apertado nos joelhos, as mãos brancas apoiadas na curvatura perfeita da pega negra do chapéu, feita de cabedal e cosida a rigor. O Mago nunca viu a ponte nem o Cristo-Rei, mas ali estávamos nós, a horas pasmadas, a seguir em direção a Almada, embalados por um sonho aprazível.

- Encontrei-me nesse mundo certo dia, perguntei onde estava e todos me enganaram, todos me contradiziam. Não sabia de onde viera, mais uma vez, estava em cena e não sabia o papel que tu dizias logo, sem o saber também. Estava vestido de pajem, e não me deram a rainha, deram-me esse improvável condutor a quem tinha uma mensagem para entregar. Dei-te o papel que estava em branco, mas tu não te riste, ao contrário dos outros a quem entreguei a mesma mensagem em idênticas folhas sem palavras. Todos os papéis estão brancos…

- Ou todos os papéis estão em branco até que nele se possam adivinhar todas as mensagens? Não será assim que nascem as palavras?

Sentados numa pedra, eu e o Mago virados para o Tejo com Lisboa ao fundo, entretidos a construir barcos de papel com esta mentira que hoje me foi servida a horas impróprias. Ninguém irá acreditar em mim, ninguém quererá acreditar, e nem mesmo o Tejo será capaz de provar esta nossa verdade.

Rimos os dois desta verdade em que ninguém irá acreditar.

quinta-feira, 2 de março de 2017

53 - A BEIRA DA ESTRADA ONDE MORRI



As palavras livres deveriam ser capazes de corromper as leis rígidas que as oprimem, pairar sem pensar em ritmos poéticos, em cores, em formas, em estéticas de modas ocasionais que as transfiguram em coisa sem graça, sem jeito, em coisas indecisas menos nobres, bem mais servis. Eternas são as palavras, ainda mais eternas são as palavras livres, são de uma imortalidade distinta e incomparável, nelas se explicam as engenharias de todos os sistemas e a perfeição contida em todas as coisas visíveis e invisíveis. As ideias dos homens que foram e dos que serão, os luares esplendorosos e o nascimento de estrelas, de galáxias e de universos inteiros, os vários conceitos de infinito, o choro de uma criança, o dia primeiro em que o rei dos reis viveu, o sentimento todo deste Mago que me enche as manhãs, as tardes e as noites com tantas palavras que ainda não sei como nascem, mas das quais já sinto saudades.

Que poderosas são as palavras livres, tão difíceis de encontrar…

Soltas de todas as amarras, invadem os espaços perdidos entre os tempos de todas as eras, pairam como um manto régio que tudo cobre e onde pertencemos, descritos por elas com uma clareza desconcertante.

Simples é a compreensão de todos os fenómenos, as palavras livres descrevem em sonhos os percursos exatamente como os sentimos, demasiado familiares, quantas vezes dolorosos e penosos, tantas vezes desassossegados. Leio estes desejos porque os sinto e assim os descrevo, e escrevo… tudo o que vejo, o que sonho, o que não sei se existe dentro e fora de mim, em palavras de outros, principalmente nas palavras desse outro com quem estes dias me habituei a conversar, o Mago, o meu Mago, o Mago de todos e de ninguém, o maior de todos os pensadores, demasiado familiar para me causar incómodo ao vê-lo chegar em forma de fantasma sonolento, com o seu pequeno bigode mal aparado, hoje com este aspeto de quem passou a noite ao relento a tentar explicar-me o inexplicável, qual a razão de ainda estarmos aqui e não em qualquer outro lugar onde deveríamos acontecer.

Mistério é a clareza com que ele se expressa e estreita o espaço infinito que nos separa, mistério é a familiaridade deste processo e a surpresa que me provocam as suas revelações. A meio da noite acordei sobressaltado por mais um dos seus esclarecimentos, e li em imagens impossíveis aquilo que sei não ter acontecido, mas que aconteceu. Colhi da leitura dessas palavras onde pertenci novidades avassaladoras acerca da história de nossas vidas. Acordei alagado em suor a escutar vozes que já não existem, em espaços que já não são, mas onde vivi. Palavras obscuras seguiram-me pelo corredor até desaparecerem, li-as e fiquei liberto do ser pouco corajoso que as escutou, em primeira mão, pela voz rouca e compassada do Mago que esta madrugada me visitou. A liberdade das palavras dos sonhos é feita de uma objetividade que pesa mais do que a própria realidade. Caminhei jovem nessa estrada onde o inconcebível ocorreu e acordei hoje, de madrugada, vindo diretamente de um espaço e do tempo onde a tragédia aconteceu. Confesso ter ficado sem voz e quase sem pinga de sangue. Perdi a noção do externo de mim, as sombras no teto do quarto e no chão quieto acabaram de vez com a paz do meu descanso, mas tinha de ser assim. Li as palavras do Mago naquela sua voz muda e rouca, consegui escutá-lo e li-o desta maneira inquieta que tanto me perturbou. Morremos todos nesse trágico acidente! Passados todos estes anos a criança que voou por sobre a estrada e pelos céus do abismo que a viatura abraçou, acordou nos lençóis de agora, a mesma pessoa desse dia mas com os átomos de hoje, exatamente como fui, exatamente como sou, revelação lida como um trecho de uma prosa rebuscada dessas coisas demasiado familiares, demasiado palavras conhecidas, uma solidez escura de coisa perpétua e nunca acabada que de quando em vez se mostra, sem aviso prévio, nestes clarões construídos por palavras invisíveis declamadas pela voz do Mago poeta.

Fico exausto com estas revelações.

Leio-as, adquiro a objetividade possível e tento voltar a adormecer.

Pesa-me a clareza deste mundo e dos seus estranhos caminhos.

Grandes são os mistérios contidos neste manto régio sagrado que pisamos e contemplamos. Se leio, é porque sou, se te escuto, é porque estou, se escrevo, é porque necessito das palavras para sobreviver, para ser e para estar, para tentar ser livre e ler como quem passa e se sente suficientemente nobre para ver e dormir inquieto até voltar a acordar, de novo, num outro tempo e num outro leito. Serei o mesmo, mas já outro, composto por átomos desconhecidos, mas que são já, também, essa outra parte de mim.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

52 - QUAL É A COR DO TEU CORAÇÃO



O melhor de teu coração são os sonhos que nele habitam, pois de monotonia não se constroem sonhos e assim me prendo às imagens puras dessas manifestações e dos conceitos que nelas descubro. Amo o indefinido e a fantasia e a vida artificial de que sinto falta como de um sonho puro e perfeito sem nenhuma relação com a realidade. Por que razão conversamos tanto sobre assuntos circunstanciais onde, com languidez, nos demoramos? Porque razão não obedecemos à vontade de nossos corações de cores idênticas e nos entregamos um ao outro na única verdadeira conversa que deveríamos ter? Não possuo resposta, suponho imaginar a microscópica razão para que tal nunca aconteça, e analiso interiormente todos os aspetos científicos, os contornos químicos, psíquicos e psicológicos desta intricada tessitura da vida inexistente de nós. Somos tão reais como uma qualquer figura de um romance, mais reais do que todas as artes ou a mistura delas todas, mais reais que todas as obras literárias ou todas as sinfonias harmoniosas criadas por impulsos obedientes apenas a paixões sem impedimento, mais reais do que coisa nenhuma…

A nossa alma é alada e possuí a mesma cor dos nossos corações, esta evidência encontra-se exposta no centro da montra da loja de segredos onde me demoro horas a fitar o fundo da realidade com olhos tristonhos. A verdade prende-me os pés ao chão, impede o meu avanço ou recuo, não consigo atravessar a rua, não posso voltar a mim. Olho a cor do teu coração com os olhos mais humanos que em mim existem sem me conseguir içar deste sonho clandestino onde navego.

Um aviso inevitável da consciência ergue-me, por fim, do sono de onde regresso, com esforço. Sou agora um desertor da alma e do desejo. De olhos tristes e cansados, despedi-me mais uma vez de ti. Do alto do abismo imenso, espaço infinito que fica entre o sono e o despertar, a paisagem misteriosa despe a bruma morna e luminosa que ainda agora preenchia os cantos esbatidos dos meus sonhos.
Já não sei quando te vi, nem onde, se o nosso encontro não terá passado simplesmente de um quadro pintado por alguém, de um longe feito perto e não distância, de um risco na estrada, de uma consciência tão forte e tão intensa que te vendo nesse dia e a essa hora, de todos os outros tempos me esqueci.

O Mago sabia, e escreveu, um dia, que a calma toda que eu nunca tive me chega à alma quando penso em ti. O silêncio do Mago é agora este meu silêncio a cantar nesta tarde tristonha que quase esconde a ponte e o rio e o céu e as encostas da serrania. Foi num quadro que nos vimos… foi num quadro, sim, que te vi…
Aproximas-te, passas por mim a sorrir, e eu sigo-te.
Não me volto para trás, pois se te vejo sempre e ainda.
Parou o Tempo para te deixar passar…
… e o resto adivinhas facilmente sem que tenha de te dizer…
Qual é a cor do teu coração?
Tua é a cor do meu coração.
Qual é a cor do teu coração?
Parou o Tempo para nos deixar passar.
Na prosa, nas palavras, estão contidas todas as possibilidades do mundo.
Diz-me como nascem as palavras? E tu disseste!
No Verbo se corporizam todos os mistérios, se desnudam sinuosamente as ideias, eu própria me dispo e estremeço perante a nossa nudez de espécie alguma, desejos, estremecimentos, páginas e mais páginas frias de corpos inexistentes, apenas a imagem refletida por palavras criminosas que nada fazem acontecer … e nós tão cansados de esperar!

Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Se sofremos inteiramente, porque sofremos? Palavras mais não são que devaneios externos escritos sem raciocinar, serão coisas sem sentido, água corrente de um ribeiro esquecido onde choramos por mais palavras ainda por acontecer. A tua prosa tem-me feito chorar, e hoje voltei a chorar! Ai que falta me fazem as tuas palavras! Relembro-as e choro pelas saudades de tudo o que nunca tivemos ou teremos, e um ódio tão verdadeiro quanto doloroso escreve em mim palavras instintivas que me assombram os dias e me invadem a solidão. Odeio-te, odeio-te quase tanto quanto te amo, amo-te quase tanto quanto te odeio, nem imagino o que é este Ódio-Amor, este Amor-Ódio que sinto por ti, e depois prefiro não sentir mais nada, nada mais me pesar ou destruir, e depois dispo-me completamente, uma e outra vez, sempre, repetidas vezes, galas completas onde me dispo completamente para ti, apesar de te odiar tanto, mas tanto, que era capaz de nunca mais me voltar a vestir o Amor que tenho por ti.  

Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Escreves? Para quê? E o que lês?
Confio no que escrevo, e no que leio, confio nas palavras do Mago que nunca dorme nem dormia. Inquieto, abdicou dele próprio até que a Liberdade profética o visitou e o coroou.
Mago, Contemplador sem razão do mundo sem propósito… assim se batizou.
Como nascem as palavras? Através da leitura repetida de livros banais, e ao fim de alguns minutos, quem os escreve somos nós, e o que aqui está agora escrito não estava antes em parte alguma…
Diz-me como nascem as palavras? Estremecemos, e tu disseste!
Qual é a cor do teu coração?
Tua é a cor do meu coração.
Qual é a cor do teu coração?
Parou o Tempo para nos deixar passar…


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

51 - ESPERO POR UMA NOVA INFÂNCIA


Quero tocar uma serenata a bordo de um barco, escrever conversas verossímeis entre personagens de um romance com detalhes excessivos e laivos de realidade. Acredito nas dores e tragédias todas dessa história que vou criando, das almas imaginadas em frases com e sem sentido, nos monólogos dessa novela instintiva de gramática fácil de entender. Assim sinto-me capaz de criar algo de deliciosamente moderno, de verbo fácil mas delicado, sem suicídios de revólver que destruam as vidas desses homens e mulheres que ajudo a construir e a quem dedico parte considerável dos meus dias. Eis o problema que me tem dado cabo do cérebro, pois não sei tocar um único instrumento musical, e não sou capaz de alinhar frases que façam qualquer sentido. Que significado terão essas conversas que ficarão por escrever ou as sonatas que jamais serão compostas? Que conhecimento teremos delas? Correm-me nas veias da imaginação, só aí contemplarei essas obras imperfeitas e livres que facilmente serão esquecidas antes de eu as reconstruir. Melhor seria ser homem sem ideias ou imaginação que apenas acredita no significado das coisas ainda por dizer. Melhor seria eu ser a mais banal das criaturas, não ter profissão nem fé nem distrações, ceder a prazeres fúteis e despropositados, não saber ler, não distinguir a mentira nas conversas mais comuns, sentir a alegria somente como um gesto de raiva que cedo se esboroa ao sabor de um vento desviante.
Deixei-me levar por considerações descoloridas, mas nesta praça onde medito o sol espreguiça-se e ilumina uma tarde esplendorosa que dentro de momentos deixará de existir. Mais uma vez estou cético quanto à existência real deste lugar e deste tempo onde agora estou. Tudo será mais fácil de entender quando me encontrar cara a cara com o Mago, e todo o nosso ceticismo deixará de ter razão para existir.
Vejo esse outro tempo com clareza, antes não o visse, antes me dessem imagens de árvores e caras e sorrisos artificiais com quem pudesse gostar de conversar sem que a náusea me atingisse as células à primeira sílaba da primeira palavra que me oferecem.
É uma coisa muito física e que me cansa.
Preferia conversar somente com o olhar, sem palavras, compreender os outros através dos seus sorrisos e expressões, captar sem cansaços tudo o que lhes vai na alma, apenas o que verdadeiramente interessa, apenas a literatura do instante irrepetível e doce que nos seria dado a provar.
Vejo essas conversas em que nos compreendemos sem dizer uma única palavra. Sem esforço somos mestres contemplativos de um inteligível difícil de encarar. Praticar esta arte contrai todos os músculos do rosto de maneira ímpar, e as nossas caras transformam-se em cartazes coloridos de um grafismo extraordinário tão complexo como uma pintura de Almada. O nosso coração percorre essa estrada sem receios, o espelho visível desses outros que também somos desvenda-se ao outro e já nos conhecemos sem antes nos termos encontrado.
- Mago, quando deixaremos de ser invisíveis um para o outro? Quanto tempo faltará para que esta fantasia cinzenta e dolorosa seja substituída pela realidade fiel do infinito onde tu e eu nos encontraremos à mesa do nosso café.
Nada é tudo isto que escrevo.
Estéril é tudo aquilo que ensino.
Falsa é toda a emoção que comunico.
Acredito no homem Mago que afirmou, com inteligência, a evidência desta descoberta que também a ele atingiu como um raio súbito caído dos céus.
Para que possa ter toda a liberdade de que necessito fecho, cansado, as portas das minhas janelas. Foi o Mago quem me ensinou!


sábado, 18 de fevereiro de 2017

50 - ESTRANHO ESTE LUGAR ONDE NÃO EXISTO


Regresso a este lugar onde sou quando me faz falta o lugar onde não estou, e sofro. Por vezes sinto-me ainda mais órfão e padeço por me considerar um estranho, o temperamento altera-se involuntariamente. Dói-me a indiferença desagradável da rotina que maltrata os afetos e administra com habilidade um sofrimento atroz talhado com inteligência.


Desejo nada ter para desejar, quero abafar toda a arte que em mim possa existir, e tal como o Mago, a vontade que eu tenha de querer uma coisa é suficiente para ela morrer, e a ânsia de sentir fica sempre aquém do que atingimos. Nada dizer, nada sentir, nada exprimir, ser dolorosamente feliz nesse infortúnio errado de mim próprio, uma deliciosa e complexa incompreensão da minha figura não acontecida. Sonho contigo, e os meus silêncios interiores apagam-se milhares de vezes nessa terra espiritual onde nos movimentamos e acontecemos. O sonho criou a vida-real mais falsa e mentirosa que podia ter acontecido, e que de nada nos serve. O mundo é falso e castiga pois não gosta de ser sonhado, e o meu sonhar-te separou-nos muito antes nos ter unido de todas as maneiras possíveis e impossíveis, ignorou o Dom supremo que a ausência mata e o tédio petrifica. O nosso amor não nos possui, é este raio de sol acabrunhado que desassossega mais que todas as sombras da incerteza. Esquecemo-nos um no outro, um dentro do outro, brilhantes estrelas em sonhos por realizar, anéis de novos Saturnos a rodopiar em dedos divinos de peles claras eternamente jovens. Que me importa se só ficam espaços por preencher, que nos percamos no céu infinito sem sermos capazes de nos encontrar, e nos perdemos em conversas absurdas de frases sem nexo e sem sexo, tão imperfeitas e contraditórias como todas as coisas sem sexo o são. Eterna, absurda contradição! Somos paisagem humana abandonada, não vemos, mas sentimos tudo aquilo que não nos pertence e merecemos, e ainda o que fomos incapazes de dizer de nós.


A ave aproxima-se, gela de novo as minhas palavras, estas que não são minhas e que imitam o que eu queria dizer sem conseguir. Imito os passos falsos e os gestos de outrora, revisito os lugares onde me senti feliz, procurei o teu perfume no lugar vazio que imitou a tua presença e a cor do teu olhar. A nuvem longínqua caiu de repente sobre a minha Terra, e choveu uma chuva verdadeira de gotas de água geladas capazes de me fazer sonhar mais um sonho isolado, um que fale de amor, de vida e de arte, um sonho capaz de separar as mais banais células do meu corpo dos pensamentos estéreis que as compõem, um sonho que me ajude a deixar sonhar.


Onde fica o laranja do meu entardecer?


O Mago afirmou que apenas possuímos a sensação do nosso próprio corpo e não o corpo de verdade, e o mesmo acontece com a alma, que nem é nossa sequer.


Possuímos sensações, ao menos? Todas as sensações são ilusões…


A ave regressa, em voo inclinado, quase picado, a bater as asas rosadas ao vento, mostra descontentamento por me ver. A ave pertence ao vento que passa e ao rio que sobrevoa, é um corpo sem fronteiras definidas bem mais livre do que alguma vez serei.


Sinto o voo do pássaro apesar de não conseguir voar.


A força do animal agora é minha porque o vi, porque fui capaz de o escutar. Sonhei com ele antes mesmo de o ver, e a diferença entre esse antes e este depois é a incógnita presente na equação de quem dá realidade aos sonhos, de quem tenta dar ao sonho o equilíbrio da realidade, e assim sofre…


Espero por ti, meu amor, ou então sonho contigo.


Olho para ti, timidamente, e sei que sou como aquele louco que não consegue deixar de olhar de maneira deselegante para a senhora de aspeto distinto e misterioso que agora mesmo se sentou no banco de jardim.


Espero por ti, meu amor, olho para ti como um louco, ou então sonho contigo, em segredo, pela centésima milionésima vez.

domingo, 22 de janeiro de 2017

49 - IMPOSSÍVEL DE ACONTECER


A nossa existência talvez não seja real. Materializei-me nesta figura de carne e osso que vou desconhecendo a cada dia mais um pouco. Deixamos de prestar atenção a quem somos e seguimos viagem para além da brisa e das esquinas sem rumo definido. Quase me esqueci de escrever, disseram-me que não fazia diferença se deixasse de escrever, mentiram-me, mentimos sempre para perpetuarmos o nosso avançar até esse pedaço de amanhã onde nos encontraremos. Resta-nos o poema de outrora, as suas cores e os seus cheiros, o amor nele compreendido e tão esquecido, resta-me a solidão da sua companhia.
- A tua presença é cada vez mais uma constante em mim, estás aqui, agora mesmo, ao meu lado, a desencaminhar-me os pensamentos delirantes. O fumo do teu cigarro fino a desenhar fantasmas adocicados pelo ar onde a luz deste sol matinal lhe penteia formas que tento decifrar. Distraio-me assim, a fazer de conta que sabes comunicar como os Apaches e os Comanches e os Sioux, e tu sabes tão bem comunicar através destes sinais de fumo. Eu analiso as imagens à tua semelhança, Mago, as formas esguias esbranquiçadas são iguais ao teu perfil, e o teu chapéu esvoaça levemente inclinado sobre a testa desenhada na perfeição. Sinto-te aqui bem perto, sentado na cadeira em frente à minha, espectral e desassossegado, as ideias todas a fluírem ao teu espírito, decorrentes de um sonho que agora é meu, e tu olhas para mim e sabes que durmo mal, nem precisas de o afirmar. Convidava-te para o jantar mas sei que não aceitarias, repetirias a fuga que ensaiaste após o chá que bebemos junto à gazela que eras tu, sei agora que a gazela era o teu pensamento a despedir-se de mim, e eu feito navio de carga incapaz de reconhecer a evidência natural desse teu gesto de amabilidade. Mago, tu és bondoso, foste de uma gentileza quase doentia para a humanidade que não te soube compreender, e sofreste a provação porque sabias que era assim que tudo teria de acontecer. O teu presente foi tudo menos inofensivo, as tuas palavras nasceram diferentes das demais, dedicaste a vida inteira a descarná-las da sua inocência e bondade, da suposta moral que lhes pudesse estar associada, pintaste-lhes uma total ausência de fé e uma aspereza campestre quase física, e as cores da tua ímpar felicidade solitária move-se, mística e alada, igual ao fumo que libertas a cada bafo teu.
Permaneces a meu lado, mais próximo ainda, nesta tarde inútil entrecortada por sons pestilentos que nos impedem de raciocinar. Os mamíferos bípedes movem-se, alienados, ausentes, insensíveis, num bulício permanente. Tornam-se insuportavelmente ruidosos pois não sabem quando se devem calar. A paisagem é composta por inúmeras personagens desinteressantes. São vidas às quais somos indiferentes, almas vazias, tão abstratas como as nossas, mas talvez mais reais e verdadeiras. Esta incapacidade que sentimos em as tolerar talvez resida na não veracidade da nossa existência que nos torna incapazes e sonolentos. Amanhã estarão esquecidos, hoje mesmo os esquecerei com grande facilidade, são apenas sombras e ruídos parasitas, visões incorpóreas desfocadas, tortas, apenas um mau momento que depressa terminará. Sentei-me nesta mesa de café para falar contigo, vejo o teu sorriso enquanto esfregas as mãos esquálidas para as aqueceres. Trazes o casaco descomposto e o chapéu desalinhado, mas isso não importa porque hoje é sábado e temos todo o tempo do mundo. Se quiséssemos, poderíamos facilmente desligar estes outros que não existem… destruí-los, apagá-los, retirar-lhes as vozes e cortar-lhes as línguas opressoras. Se quiséssemos poderíamos facilmente degolá-los, desmembrá-los e condenar ao perpétuo esquecimento as suas conceções fúteis da vida.
- Mago, será esta solidão que me faz pensar assim? Tu dizias que a presença de outra pessoa te atrasava imediatamente o pensamento, era um contraestímulo que te fazia “perder” a inteligência, e passado pouco tempo era apenas sono o que sentias. Os teus hábitos eram da solidão, e a tua moral era não fazer a ninguém nem mal nem bem. Ser altamente sociável de um modo altamente negativo... e não sermos mais do que isso.
- Mago, o mundo precisa urgentemente de ser reformado. Porque não dizes nada, … claro que sim, desculpa a minha ousadia, claro que já disseste tudo o que havia para dizer, e puseste grades altíssimas a demarcar o jardim do teu ser, pois assim não te submeterias ao estado nem aos homens. Tu, tal como eu, nunca tiveste amigos… amigos, nenhum… só uns conhecidos que julgam simpatizar connosco e teriam pena se um comboio nos passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.
Ris de mim, estás a rir-te e as tuas gargalhadas são tudo menos trágicas, são quentes e unem o meu afastamento natural, ao contrário de tudo o que tu dizias, e em torno de nós cresceu esta auréola de amizade, não de frieza.
- Eu amo-te, Mago, amo-te de verdade, e sabes que não me falta, de todo, o sentido estético. Como vês, não é impossível alguém amar-te. Não será amor esta conversa que de quando em vez praticamos? É algo muito parecido a amor esta conversa neste lugar da minha vida. E nós, seremos parentes ou desconhecidos?
Por debaixo deste céu estrelado de inverno, uma lua quase nova reflete o nosso modo de pouco sentir, tal e qual aquela primeira vez em que escreveste estas mesmas palavras. Agora vou regressar à estrada que sempre conheci, esta estrada que aqui escrevo e te dedico. Eu amo-te, Mago, e fiz acontecer o que sempre te pareceu impossível, como um estranho tratar-te por tu...

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

48 - ENTARDECER


 
O céu, amarei para sempre este céu de um vago janeiro onde viajo, onde a paisagem amortece a queda das palavras que hoje ainda não escrevi. Passeio o olhar pela auréola de tons onde a luz de um sol intenso vibra, apesar da tarde fria. Neste oceano nada é tristonho, o dourado enfeita as colinas e fachadas dos edifícios antigos onde a história de outros tempos permanece, melancólica, nas paredes e pavimentos, nas escadarias e ruelas, nos telhados e varandas, nos pátios e nas amuradas da sé catedral desta cidade onde habito. As casas todas pintadas de branco, os telhados avermelhados, a linha do horizonte a pairar a norte, o perfil monástico do mosteiro, a oeste, e aqui bem perto a faculdade centenária onde fantasmas sorridentes pairam, absurdos, hoje menos angustiados do que ontem, a recordar viagens de outrora.
Fantasmas, viajaram mais do que nós, partiram e visitaram outras terras, outras gentes, mas não podem comunicar nada do que viram, nem podem ensinar o sentido das suas experiências pois tal seria inútil. O Mago é o único fantasma que consigo escutar. Antes de o ser, acautelou a sua despedida e mediu na exata proporção o peso inteiro de suas palavras. Este sol de hoje, foi ele quem o decidiu partilhar connosco, por algumas horas, e eu pergunto-me se esta luz é real, se não passa de mais uma ilusão que decorre do simples facto de eu estar vivo e o Mago ser bem mais rápido do que eu a raciocinar.
- Viajei sem qualquer quantidade de medida de tempo. Viajei onde o tempo se não conta por medida. Eu parti? Eu não vos juraria que parti…
Mago, partiste pelo crepúsculo, tu próprio o escreveste, e todos os outros símbolos que apenas deuses poderão compreender. Não importa, ao recordar as tuas palavras arranho os telhados desta paisagem que se estende diante de mim e recordo-te, eu que nunca te vi, pois és a luz desta tarde de inverno, esta luminosa e resplandecente evidência que fulge por toda a parte. Ocultaste a esperança de ti, inutilmente, mas és agora toda a esperança do mundo. Todos os continentes estão moribundos, têm os seus dias contados e não sabem como se irão reinventar. Notícias de guerra sonhadas e por sonhar começam a ser escritas, para além das que estão a acontecer, e de todas as que acontecem sem que ninguém as noticie. É como se fossem impossíveis terras de ninguém, lugares ocultos que esmagam pela sua invisibilidade, e para que me contas tu isto, Mago, para que me contas o que todos preferíamos não saber?
Escondeste-te atrás da porta ou debaixo da mesa para que a Realidade não te visse, e venceste-a com este truque simples, e essa tua infinita capacidade de viajar. Lá fora a luz colorida permanece quase inalterada, o sol baixou um pouco mais a sua altura e aproxima-se da parte oriental da paisagem, e a ideia do movimento do astro onde nos imaginamos acordados atinge-me e eu perco-me por momentos sem saber onde irei desembarcar.
As palavras de hoje não são ideias minhas, não as consegui, até agora, imaginar, pois se estou parado a olhar para o lado de fora da imensa janela do café esplanada onde me encontro. É o meu amigo Mago que brilha lá fora no céu mais branco que azul. A sua luz é antiga e tão moderna, renovo as minhas emoções neste convívio mudo que me enche de pensamentos contraditórios.
Leio a luz acima de todos os teus livros, e o vento de hoje desaparece, a vida quotidiana protesta de tão absurda e fútil que é, e fica apenas a paisagem, permanecem estes telhados de casas velhas com paredes brancas de janelas antigas e histórias centenárias. Tudo seria menos inútil se gozássemos antecipadamente as meditações abstratas de um simples por-do-sol.
A tarde abranda e a luminosidade ganha configurações ainda mais poéticas e Pessoanas. Do meu café sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, surgiu-me esta viagem na cabeça.

De agora em diante este imaginário será bem mais surreal e inquieto.
De agora em diante o mundo inteiro estará bem mais perto do fim.